terça-feira, 22 de setembro de 2009

A Influência do Neo-Realismo Italiano em Histórias Mínimas

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Os Ombros Suportam O Mundo
Carlos Drummond de Andrade)

O cinema neo-realista italiano surgiu no final da Segunda Guerra Mundial, período de queda do regime nazi-fascista na Itália, e, de uma forma mais ampla, a decadência de uma arte promovida pelo Estado, “comportada” e sem comprometimento com os problemas enfrentados pelas camadas sociais menos abastadas.
Porém, apesar do comprometimento social, temos um momento de saturação das ideologias, e assim, há uma busca por fazer uma arte que apresentasse a vida simplesmente: o homem comum, o cotidiano e sua riqueza, sem mistificações, sem construções de heróis em histórias homéricas e sem a intenção de fazer campanha de uma ideologia qualquer que fosse, seja ela dita de esquerda ou de direita.
É a sociedade italiana em crise social e ideológica o cenário propício para o aflorar das idéias dos protagonistas deste movimento cultural, que recebeu o nome de neo-realismo.
O cinema neo-realista não surgiu repentinamente, mas foi sendo criado a medida que essa preocupação de se aproximar da vida cotidiana foi tomando conta dos diretores e roteirista da época. É importante destacar que o cinema italiano neo-realista recebeu influencias do realismo poético francês, houve ai um período de transição até o auge do estilo, em que surgiram filmes como Roma, Cidade Aberta (Roberto Rosselini) de 1945, considerado o marco inicial do movimento, e Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica), de 1948, um dos mais expoentes filmes do movimento, conseguindo agrupar os principais elementos do estilo: a vida do homem comum, suas dificuldades e alegrias, o cotidiano, as cenas simples e descomprometidas com o objetivo do protagonista principal, a aproximação com o cinema documentário.
A importância do Neo-realismo Italiano se deve a sua contribuição, não só na temática cinematográfica, mas pela concepção de uma linguagem técnica própria e bem definida que influenciou e influencia o cinema mundial até hoje.
Na temática, temos a retratação da vida comum, das pessoas nas ruas, nos seus trabalhos, cujo grande feito dos personagens é justamente sobreviver.
Mas é na decupagem desse cinema que talvez tenhamos sua maior contribuição. Há uma grande aproximação da linguagem cinematográfica com a dos documentários, ou ainda, pode-se afirmar, que há um retorno ao “primeiro cinema” que simplesmente retratava cenas do cotidiano, um cinema mais fotográfico do que narrativo. O cotidiano, retirado na edição dos filmes clássicos, aparece aqui como importante coadjuvante, chamando atenção do telespectador para a riqueza da vida comum, para o cenário em que a personagem se encontra, as pequenas coisas comuns que compõem a vida em sua complexidade, nos fatos do acaso. As cenas buscam retratar fatos relacionados e não-relacionados a trajetória dos protagonistas principais dos filmes, apenas compõem a paisagem.

Ladrões de Bicicleta, obra expressiva do Neo-realismo.

A obra de Vittorio De Sica, Ladrões de Bicicleta, é considerada uma das obras mais expressivas do estilo, por reunir todos os seus elementos tanto na questão da temática, quanto no roteiro e na decupagem.
O Filme narra a história de Antonio Ricci, interpretado por Lamberto Maggiorani, um desempregado no pós-guerra que consegue um emprego de colador de cartazes para conseguir dar o sustento à sua família. Não bastasse as dificuldades cotidianas, ele tem sua bicicleta roubada e corre o risco de perder seu emprego.
O tema é portanto, o do homem comum, o trabalhador que precisa das condições básicas para dar o sustento à família, que encontra o descaso do Estado e frieza da Religião, contudo, o filme não pretende apresentar uma tese ideológica, mas conta apenas uma história do cotidiano.
Além dos fatos relacionados ao objetivo do protagonista, há cenas que apenas compõem a paisagem, como por exemplo, a de Antonio com Bruno num bar, onde eles tem um pequeno momento de alegria. A câmera registra eventualmente outros protagonistas, como os clientes da vidente, que nada têm a ver com a trama central do filme.
Para entendermos a decupagem do filme neo-realista italiano, podemos observar o que Cesare Zavattini cita em seu artigo “Algumas Idéias sobre o Cinema” de 1953: “a posição do cinema americano é a antítese da nossa: enquanto nós estamos interessados na realidade ao nosso redor e queremos conhecê-la diretamente, a realidade nos filmes americanos é artificialmente filtrada”. A decupagem clássica busca mostrar apenas o que é importante que o expectadorer entenda a narrativa, objetivo do protagonista e seus obstáculos na busca desse objetivo. Já a decupagem neo-realista pretende mostrar a vida ao redor desse protagonista, os fatos relacionados ou não ao centro narrativo da história
Para isso, o filme neo-realista trás alguns artifícios para buscar esse objetivo: o detalhamento, os tempos-mortos e a desdramatização
Como diz Cezare Zavattini, não basta mostrar o avião uma vez, ao contrário do que eles pensam (os americanos), eles (os neo-realistas) não querem mostrar o avião três vezes, mas vinte vezes se for possível. Por isso, as cenas são filmadas com várias tomadas, mostrando de ângulos diferentes, mostrando detalhes, como a cena da feira onde são vendidas as bicicletas roubadas, as bancas, as peças de bicicleta e as pessoas.
Os tempos-mortos são outro recurso usado pelos neo-realistas, os padres conversando durante a chuva, o rapaz recebendo as orientações da vidente são cenas que não interferem na narrativa, apenas estão ali como na vida, onde o acaso coloca situações que em nada interfere no viver.
A desdramatização é outro recurso típico do estilo, são as chamadas falsas-viradas, onde há acontecimentos que criam no espectador a idéia de que haverá uma mudança de rumos na dramatização, mas que não afetam o desenrolar da história, temos por exemplo a cena onde Antonio Ricci pensa que Bruno está se afogando no rio e na verdade é um rapaz, e o protagonista continua sua busca pela bicicleta.
Além desses elementos, devemos citar a idéia da câmera na mão do cinema documentário, muitas vezes usada pelos neo-realista para darem o tom de realidade aos filmes e os cenários reais.
Da mesma forma que surgiu, ou seja, paulatinamente, o cinema neo-realista se descaracterizou, absorvendo outros elementos e perdendo o radicalismo nas suas idéias, mas deixou um forte legado no cinema mundial, influenciando vários cineastas até os dias atuais.

A influência do Neo-realismo italiano em Histórias Mínimas

Um exemplo do legado do Neo-realismo Italiano no cinema contemporâneo é a obra: Histórias Mínimas (2002), do argentino Carlos Sorin. Sua influência é notável, a começar pelo tema: A narração de três histórias paralelas de personagens comuns, com objetivos banais e tirar disso a riqueza que a vida simplesmente tem para mostrar.
O filme é a prática das próprias palavras de Cesare Zavattini: “Chegou o tempo de contar aos espectadores que eles são os reais protagonistas da vida”, ou ainda, quando se explora um fato banal, como a história de cada um dos personagens do filme, vemos que: “a banalidade desaparece porque cada momento é realmente carregado com uma responsabilidade. Cada momento é infinitamente rico. A banalidade nunca existiu realmente”.
Ao assistir o filme, o espectador muitas vezes se sente na Patagônia, observado as paisagens que se sucedem enquanto Justo Benedicti viaja para buscar Carafeia, seu cão perdido. Muitas tomadas são feitas com uma câmera na mão, que nos dão a idéia de um documentário.
Temos a presença dos tempos-mortos e o detalhamento. Um exemplo de tempo-morto buscando temperar a cena: Ao entrar no consultório médico Justo Benedicti se depara com um comercial de aparelhos de ginástica, e por alguns segundos, a cena mostra os protagonistas do comercial conversando.
A estrada é mostrada várias vezes no percurso, são feitas tomadas demoradas dos carros, das paisagens.
Além disso, o filme é pontuado com pequenos falsos-pontos-de-virada, por exemplo, quando Julia, a moça que dá carona a Justo, não o encontra no carro no posto de gasolina. No consultório quando se ouve a voz de alguém falando sobre o filho de Justo que o estava procurando.
Assim como nos filmes neo-realistas, mostrar a vida de pessoas comuns, sem filtros e com toda sua riqueza é central em Histórias Mínimas. O filme é um exemplo de como o Cinema Neo-realista Italiano não acabou, mas foi incorporado a outras tendência. Fato é que, a proposta dos companheiros de Cesare Zavattini continua bastante atual, pois além da vida dos heróis e das princesas hollywoodianas há uma outra vida, e essa não tem nada de banal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário